27 dezembro 2005

ESTADO SOCIAL X ESTADO PENAL - O MITO DO ESTADO MÍNIMO

A redução do Estado social-econômico, aquele ente que exerce o papel do “grande provedor” de serviços para a população, como redistribuidor da renda através de políticas públicas abrangentes e inclusivas, é desprezado pelos neo-liberais a partir da formulação do conceito de “estado mínimo” , ou seja, menos Estado nas relações entre os indivíduos ou grupos.
No Estado neo-liberal o governo não interfere na produção de bens e serviços, cabendo tal atribuição ao mercado, a competição é estimulada e o controle estatal restringe-se a mediação, via regulação e vigilância, dessas relações entre os grupos ou entre indivíduos. Os serviços são concedidos ao mercado, este regula as inclusões e, obviamente, os “despossuídos” financeiramente estão excluídos da rede de proteção social. Essa é uma lógica maximizadora, fazer mais com menor custo, entretanto socialistas e comunistas repudiam essa lógica a partir de uma contradição contida nela mesma: como supor que todos possam maximizarem-se sem que haja utilidade de um bem produzido por um em relação ao produzido por outro? Como pode um empresário, digamos, um industrial, aumentar sua produção, suas vendas, sem a utilização de uma mão de obra qualificada, competente e bem remunerada? Será viável supor que ele poderia maximizar-se reduzindo salários ou demitindo funcionários? Assim sendo, para a “esquerda”, ela não resiste a uma observação empírica nesse mister.
Outra crítica que emerge do estudo do conceito de proteção pelo “estado mínimo” é que sua única dimensão redistributiva refere-se a produção de serviços judiciários e policiais para os cidadãos. Esta seria a única atividade onde, caso lançada ao mercado, uma competição traria efeitos devastadores. Sendo assim, admite-se o monopólio do uso da força pelo Estado; contudo poder-se-ia supor que outras atividades com as mesmas características pudessem também pertencer ao governo, mas seu criador, Robert Nozick, não admite tal possibilidade.
A redução do estado social e econômico, nessa lógica enviesada pregada por Robert Nozick, traz em contrapartida um “mais estado” policial e penitenciário, através da criminação de condutas e da incriminação cada vez maior de indivíduos, pela criminalização da miséria e pela imposição do trabalho assalariado precário e sub-remunerado. Essas medidas tornam-se catastróficas em países de pouca tradição democrática ou sem ela, onde seus efeitos tendem à vertente da violência e do desrespeito aos direitos humanos, podendo transformar-se em totalitarismo.
Loïc Wacquant
[1] descreve a “febre neo-liberal” nos EUA e em diversos países europeus, bem como a difusão de uma política pública característica do “estado mínimo” : o programa “Tolerância Zero” da cidade de New York. A propósito da redução do Estado Social e conseqüente aumento do Estado Penal, diz:

“Pois à atrofia deliberada do Estado Social corresponde a hipertrofia distópica do Estado Penal: a miséria e a extinção de um têm como contrapartida direta e necessária a grandeza e a prosperidade insolente do outro.” (p. 80)

Se Nozick sugere que o próprio mercado solucione os problemas decorrentes dos conflitos entre indivíduos ou grupos, através da competição, das associações espontâneas, das pressões de mercado, da maximização do trabalho e do auto-interesse racional, independentemente da ação estatal, cabe então questionar: para que Estado ?
Entretanto ao defender o “estado mínimo”, Nozick estabelece as fronteiras da ação estatal: tais limites situam-se no que as pessoas podem ou não podem fazer umas às outras; essa rede de proteção universal e não diferenciada, dirigida sem distinção a todas as pessoas, inclusive àquelas que não pagaram por ela é o que ele chama “estado mínimo”.
Ocorre que num regime de mercado não interessa prestar um serviço e, diga-se de passagem - um serviço caro, a quem não pode pagar; assim é imperioso que se imponha o trabalho assalariado aos miseráveis, para que sejam “incluídos” na rede de proteção e, através do monopólio do uso da força, criminalize-se a miséria. São os princípios do “Éden Liberal” que se materializaram sob a batuta de Rudolph Giuliani em New York.
Nada mais lógico, uma vez que o “Tolerância Zero” é o complemento policial indispensável do encarceramento em massa. Acrescente-se um “tempero apimentado” a essa receita: a privatização do sistema penitenciário, quando construir e administrar prisões se transforma em “business”.
A substituição do welfare state por um workfare state , a redução do Estado Social a um Estado Penal (ou Estado Mínimo), a imposição do trabalho assalariado precário e a criminalização da miséria são as críticas que estamos evidenciando ao abordarmos o presente tema, concluindo (sem pretender esgotar o assunto) uma análise sintética da obra “Anarquia, Estado e Utopia” de Robert Nozick.

[1] Wacquant, Loïc – As prisões da miséria, 2001

7 Comments:

Blogger Santa said...

Alexandre,
Estou aqui para desejar muita sorte com mais este blog em parceria com a Saramar. Que bom saber que esta ferramenta está sendo usada por milhões e grande parte dela, usada para o bem - para difundir o conhecimento, para o exercício da crítica. Isso vcs fazem com maetria! Um grande ano de 2006!!!

Bjs

12:53 AM  
Blogger Moita said...

Por outro lado o estado também não pode ser hipertrofiado.
Nos governos militares a união chegou a fabricar selos postais.
Certos tipos de atividade não precisam ser estatais.

2:15 PM  
Blogger Nat said...

Alexandre,

Talvez eu não tenha endentido direito seu texto, mas permita-me discordar em alguns pontos. O Estado Mínimo pregado pelos liberais (aqui não vou usar o termo neo-liberal) não significa um estado fraco e tampouco restringe-se à produção de serviços judiciários e policiais.

O conceito é muito mais abrangente. Vejamos. O que é um Estado Mínimo, do ponto de vista liberal? Certamente prega o livre mercado. Nesse contexto, o Estado como gestor é naturalmente ineficiente e deve deixar a condução da economia exclusivamente às forças de mercado, desde que estas sigam o que estabelece a lei.

Ao Estado caberia suas funções essenciais: não só fazer cumprir as leis, mas também suprir as condições mínimas necessárias para que cada indivíduo possa ter condições competir de forma equalitária por seu espaço na sociedade. Assim, é dever do Estado, (mínimo, mas forte) prover educação de qualidade, saúde, infra-estrutura de serviços básicos (como saneamento), entre outros.

O welfare state e sua rede de proteção social não pode ser substituído abruptamente por um "don't care state". Mas, também, não pode continuar infinitamente, como querem os sociais democratas. Basta ver o que está acontecendo na Europa. A evolução está no velho conceito de ensinar, gradualmente, os excluídos a pescar, não apenas prover uma minguada pesca ad infinitum.

Ufa! Desculpe pelo tamanho do texto.

Grande abraço!

8:11 PM  
Blogger Alexandre, The Great said...

Excelente comentário, Natália!
Você é uma pessoa inteligente e esclarecida. Realmente um "estado mínimo" não deve se restringir a prestação única de serviços judiciários e policiais, mas estes são os únicos que não podem, sob nenhuma hipótese, serem transferidos para o mercado.
Meu texto, se vc prestar atenção, não faz essa apologia, mas ao contrário, critica o conceito de "estado mínimo" na visão de Nozick. Também vou além, pois não o fiz neste texto, mas o "Tolerância Zero" foi testado em vários países europeus, redundando em retumbantes fracassos como no Reino Unido, na Holanda e até na França. Mesmo assim tem gente que até hoje defende esta política pública aqui no Brasil e pensa em adotá-la como solução para o crime.
O artigo foi produzido como contraponto aos defensores do "menos Estado", apenas para terem um referencial contrário e, como vc, exercitarem o contraditório, pois daí, com certeza, teremos uma melhor proposta.

Parabéns!

8:54 PM  
Blogger Nat said...

Alexandre,

Parabéns a você que, pelo seu texto inicial, instiga o debate!

Grande abraço!

9:22 PM  
Anonymous Anônimo said...

Alexandre, sempre analisei o Estado mínino do ponto de vista da não interferência da vida do cidadão e do abandono de tarefas que não são suas. Ou seja, sempre condenei o estatismo exagerado como o que conhecemos ditaduras comunistas ou de direita.
Como não sou estudiosa do assunto, pelo que entendi do seu texto, (perdoe-me e ilumine minha cabecinha, se estiver errada), estamos vivendo em plena vigência do Estado mínimo, com a diferença que os governos brasileiros não proveem os cidadãos sequer de mínimo que você citou: a segurança e a justiça.
Diria, então, que estamos vivendo, no Brasil, o Estado micro (desculpe).
Vou estudar mais.

FELIZ 2006!

beijos

12:53 PM  
Blogger Alexandre, The Great said...

Saramar, seu entendimento está correto. Em princípio o "Estado mínimo" deve ser o oposto de um "Estado empresário", paquidérmico. A nossa atual Constituição é muito inclusiva, não é própria de um "Estado mínimo". Ocorre que a prestação de tantos serviços sociais, conforme previsto, é muito caro e requer um volume de recursos de ordem faraônica, incompatível portanto com o atual orçamento. Por outro lado a malversação do dinheiro público, a corrupção e as falcatruas, independente de quem as pratica, "sangram" este já insuficiente orçamento, levando a um "Estado falimentar" pois não consegue cumprir as metas e a sua própria Lei Magna, ok?
Um beijo,

1:56 PM  

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