06 julho 2006

A ACUMULAÇÃO SOCIAL DA VIOLÊNCIA - PARTE I

Toda vez que ocorre um fato dantesco proporcionado pela criminalidade violenta em um grande centro urbano (como Rio de Janeiro ou São Paulo, principalmente), surgem inúmeras opiniões de jornalistas, sociólogos, psicólogos, representantes da sociedade organizada (e da desorganizada também), políticos, religiosos e até de profissionais de Segurança Pública, todos “escandalizados” com o fato e alguns a requererem “providências” e outros a “prometê-las”.


Contudo sem um conhecimento globalizado do problema, dificilmente alguém vai poder propor uma solução, pois o viés do casuísmo pontual e o imediatismo das propostas são a forma demagógica encontrada pelos governos de “tapar o sol com a peneira”; como se buscassem uma profecia auto-realizável.

Uma forma eficaz de “enxugar o gelo”.

A pesquisa a seguir busca esclarecer aqueles que, desprovidos da paixão momentânea do evento, poderão dela subsidiarem-se para a elaboração de políticas públicas adequadas a redução das variáveis que concorram para a eclosão da violência e a minimização de seus efeitos, haja vista não se pretender, através de sua apresentação, a eliminação absoluta do crime, o que seria falacioso propor.

O universo da pesquisa foi recortado para incidir na cidade do Rio de Janeiro, devido a naturalidade do autor.

Para facilitar a leitura, e ao mesmo tempo não torná-la enfadonha, dividirei a palestra em duas partes, publicando hoje os precedentes históricos e oportunamente seus desdobramentos e a conclusão.

Introdução

O evento, hodiernamente tipificado como crime, é tão antigo quanto o surgimento do Homem na face da Terra.

No livro de Gênesis, 4.8, [...] Caim disse então a Abel, seu irmão: - ‘Vamos ao campo’. Logo que chegaram ao campo, Caim atirou-se sobre seu irmão e matou-o.

Na ausência do ordenamento jurídico, nos sistemas sociais tribais dos primórdios da civilização, relegava-se ao exílio, ao afastamento do meio social, daqueles que praticassem atos lesivos ao senso comum de ordem. Esses renegados, condenados a perambular pelo mundo, sem identidade familiar, sem tribo, mas ainda seres sociais, não raro encontravam-se e associavam-se, o Homem é gregário.

Suas vicissitudes os aproximavam, ao mesmo tempo os embruteciam. Revolta, indignação e vingança são sentimentos que os unem e os organizam – constituem verdadeiros “exércitos de rejeitados sociais”.


Antigas lendas dão conta das invasões de aldeias pelas hordas constituídas pelos filhos renegados, que ao voltarem praticavam o parricídio, o rapto e o estupro e, na ausência do ordenamento jurídico, imperava a lei do mais forte, a dominação pela força física, pela brutalidade, a submissão dos mais fracos, a escravização, o império da barbárie.


Nesse contexto, segundo o historiador romano Tito Lívio, um grupo de habitantes renegados de Albalonga, seguidores de seus príncipes etruscos, vieram a se estabelecer numa região da península itálica rodeada por sete colinas.

A esse grupo juntaram-se os latinos e, no ano de 753 a.C., já sob o império de Rômulo, são traçadas no chão as linhas sobre as quais seriam erguidas as fortificações que circundariam as colinas, onde se ergueria a cidade de Roma. Rômulo, que se intitulava o preferido dos deuses, matou seu irmão gêmeo Remo, pois este discordava de seus planos.

Sozinho, arquitetou um plano de expansão do seu império dentro do qual incluiu, e executou, o Rapto das Sabinas, mulheres dos sabinos, uma tribo vizinha, as quais foram levadas para Roma a fim de procriarem e expandir a jovem cidade.

A dominação , que vertebra as ações sociais, confere a Roma e seus “cesares” um poder contra o qual pareceria impossível opor-se. Seguem-se séculos de conquistas, lutas, imposições. O povo de Roma acredita na legitimidade do poder de “César” e a sua cultura transcende seus limites territoriais.

A única maneira de haver uma mudança nessas relações sociais, conforme nos ensinaria Weber, seria pelo surgimento de um ídolo, o qual pela dominação carismática pudesse corroer a dominação tradicional de Roma. O grande problema da liderança carismática, e nesse caso estamos nos referindo àquela exercida por Jesus, é que sendo toda fundada na pessoa, o que ocorrerá quando o ídolo morrer?

Para Weber, num primeiro momento, ocorrerá uma crise, a seguir a sociedade tenderá para a rotinização, e a liderança poderá se tornar tradicional ou racional-legal, porém não mais retornará à modelagem anterior.

Assim podemos entender essa ascensão e queda do império romano. Com o mesmo entendimento, num salto milenar na história do Homem, podemos enxergar que o crime só se organiza socialmente se contar com alguma legitimidade na população ou parte dela, e ainda, se contar com algum reconhecimento por parte da polícia, de políticos ou da imprensa.

Acumulação Social da Violência - Origem e Evolução histórica

A pesquisa científica realizada mostra claramente a identificação de três grandes ciclos no processo de acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Cada um deles, estabelecido temporalmente, tem suas origens pesquisadas e mantém relações intrínsecas, pela construção social de seus arquétipos – os malandros, os marginais e os vagabundos , seja no simbolismo de seus personagens, seu ethos , seja na transição de um tipo para outro, em resumo todos são rotulados pela sociedade como bandidos, a nomenclatura peculiar fica por conta da época em que surgiram e atuaram no cenário social.

A expressão acumulação social da violência, própria da cognição do autor, possui um sujeito – um fantasma – construído pela acumulação de ações de bandidos, marginais, vagabundos, traficantes, polícia, alcagüetes e delatores; sua existência e sua visibilidade pelos órgãos de comunicação social atemorizam a população, temor que o alimenta e fortalece. O fantasma das classes perigosas , representadas pelos agentes citados, surge no cenário do Rio de Janeiro a partir da Proclamação da República e, até a década de 20, com os capoeiras.

A cidade com seu grande porto, capital da República e ícone cultural do país agrega em si mesma paradoxos sócio-econômico-culturais envolvendo famílias oriundas da nobreza, uma burguesia emergente, imigrantes, negros libertos, brancos pobres e migrantes em busca de oportunidades.

Os malandros constituem toda a classe de capoeiras e suas maltas, os negros libertos que não encontram no emprego formal um meio de sobrevivência, nos migrantes e brancos ou mestiços pobres que ocupam determinadas regiões da cidade consideradas “perigosas” – o Mangue, a Lapa, o Estácio, a Mangueira, o Morro da Favela dentre outros.

As maltas são reprimidas com rigor pela polícia, a partir da Proclamação da República quando, pelo novo Código Criminal, a prática da capoeira é criminalizada, passando de simples contravenção a crime, com o agravamento da pena para aqueles que formassem grupos ou maltas. Paralelamente, após a Abolição da Escravidão, o grande problema sempre foi a inserção dos negros no mercado de trabalho; muitos não conseguiam trabalhar e outros não queriam trabalhar pois o “labor” carregava o ônus da escravidão; para os que não queriam, o trabalho representava o retrocesso à servidão.

As maltas são extintas, mas não os capoeiras. Estes refugiam-se nos morros e na “zona do baixo meretrício” no Mangue, passando a viver na, e da, ilegalidade: cafetões, bicheiros, atividades ligadas ao prazer e ao vício são as atividades laboriosas dos malandros do início e primeira metade do século XX. São os malandros , como também são rotulados (e incriminados pela polícia) todos aqueles homens do submundo, que vivem no ócio, na prostituição, no jogo, na bebida e no ganho fácil: o oportunista, o punguista, o ventanista, o bicheiro, o rufião, mas também o ladrão, o maconheiro, o desordeiro e o valentão.

A partir dos anos 50 surge um novo personagem produto da sujeição criminal – o marginal. Não representa a extinção do malandro da primeira metade do século XX, mas esse fantasma possui, sem dúvida, habilidades diversas e bem menos românticas. O uso do revólver para praticar assaltos e a associação em quadrilhas ou gangs para a prática do roubo são características que o diferem do malandro, da navalha e do punhal.
Ainda que de forma eventual reunisse de três a dez comparsas para praticar um assalto, suas ações caracterizavam-se pelo individualismo, pelo improviso e pelo nervosismo.

A pesquisa revela certos pormenores bastante curiosos e interessantes, dentre eles sobressai o reduzido alcance do fantasma da acumulação social da violência sobre as classes alta e média da população; nota-se que o “problema” existia, era real e se avolumava, entretanto para as camadas mais abastadas da população soava distante uma “criminalidade urbana” no Rio de Janeiro e quando os ecos desta ressoavam em seus afinados ouvidos vinham com a contrapartida da repressão policial; esta sim, a polícia, é que deveria cuidar dessas “classes perigosas”, desse “estorvo social”.

A sociedade do Rio de Janeiro no pós-guerra e anos 50 vivia a febre da civilidade, todo mundo queria ser civilizado.

Crime? Marginais? Isso era problema da polícia, ela é que deveria contê-los em seus redutos.

Ocorre, contudo, concomitantemente um intenso movimento migratório interno. As capitais do sudeste são o objeto do desejo de nordestinos, capixabas e nortistas. A cidade não está preparada para receber, a cada mês e a cada ano, tamanho contingente de famílias que aqui desembarcam em “busca da felicidade”, do emprego urbano e da melhoria de vida.

O êxodo rural e o movimento migratório para o Rio e São Paulo são conseqüências da precarização do trabalho agrícola ocasionado pela queda da exportação desses produtos e a política de “industrialização” interna do governo Vargas.

Não existe estrutura habitacional para abrigar tanta gente, ocorrendo um processo de “favelização” da moradia.

O governo, pressionado pelas elites, promove um grande deslocamento social dessas classes menos favorecidas para conjuntos habitacionais das zonas norte e oeste. O resultado é pífio para a segurança pública. Chega-se aos anos 60 e a transferência da capital para a NovacapBrasília; o Rio de Janeiro perde parte do glamour que a sede da República lhe conferia.

Seqüencialmente tem-se o golpe militar de 64 e o fantasma da acumulação social da violência torna-se funesto, com a associação da sujeição criminal sobre marginais e subversivos ao regime.

O AI-5 envolve todos na Lei de Segurança Nacional, a Polícia, já envolvida com arbitrariedades repressivas, alia-se aos órgãos repressivos da ditadura militar, incrementando uma política de eliminação de marginais e militantes de esquerda – a tortura e as execuções sumárias são os ingredientes de fermentação desse fantasma de repressão. O custo dessa política reflete-se nas reações, a cada dia mais freqüentes, por parte dos bandidos, pois sabem que só a reação ou a morte lhes resta.

A substituição da antiga Polícia de Vigilância pela Polícia Militar, em 1967, nas ações de policiamento ostensivo e operações repressivas aos bandidos, face a missão militarista de eliminação do inimigo, insere nova vertente de agressividade ao fantasma, gerando ações de quadrilhas de assaltantes violentos, armados de metralhadoras, praticando roubos a bancos, casas lotéricas, residências e empresas; por outro lado vulgariza-se a corrupção, pois o jogo do bicho passa a ter de pagar propinas também para a PM, visto que já pagava antes para a Polícia Civil. A corrupção aliada à violência policial reduz a legitimidade do uso da força pelo estado, passando a população a armar-se e, dessa forma, contribuindo para o aumento da violência urbana.


Entramos nos anos 70 e a violência urbana, outrora distante e de pouca visibilidade para as classes alta e média alta, não mais parece ter controle e contenção pela Polícia. Os jornais, em face da demanda que o tema exige, começam a reforçar seus quadros de profissionais de matérias policiais. A sociedade, a imprensa e a polícia identificam o novo inimigo a ser combatido – o vagabundo.

Ele difere do marginal individualista, pouco astuto, ignorante e descontrolado dos anos 50; tampouco e muito menos é semelhante ao malandro. Alia um elevado senso associativo a uma feroz vertente de violência e dominação.

[...] o crime deixa de ser uma atividade informal e sem planejamento para tornar-se atividade prioritária e subsidiária. Cumpre aqui esclarecer: as atividades prioritárias das quadrilhas de criminosos organizados dos anos seguintes à década de 70 são o tráfico de entorpecentes e o contrabando de armas. Essa segunda alia-se à primeira pela necessidade de imposição e demarcação de “territórios”, além de servir também para rechaçar as investidas de rivais e de policiais. Ambas, o tráfico e o contrabando de armas, requerem para sua implantação e manutenção, altas somas de dinheiro, principalmente moeda estrangeira, para aquisição das mercadorias junto aos cartéis internacionais; por, e para, isso o crime também é subsídio de outro crime, assim os valores arrecadados nos assaltos a banco, roubos a carro-forte, roubos de carga e extorsão mediante seqüestro vão subsidiar a compra de entorpecentes e armas . (Rosette e outros, 1993) [...]


A polícia e a imprensa, ao atribuírem ao vagabundo determinados predicados, maximizam sua periculosidade. O sentimento gerado na população, ao ver e ouvir uma autoridade pública inepta diante duma descrição de um vagabundo é de pânico e conseqüente descrédito no estado como provedor de sua segurança.

Vale esclarecer, contudo, que a escala crescente de violência nas relações entre bandidos e policiais, a partir dos anos 50 e 60 deveu-se, forçoso dizê-lo, ao emprego de recursos violentos de mediação por parte da polícia gerando a contrapartida dos criminosos no mais flagrante processo, que repercutiria nas décadas de 70, 80 e posteriores, de acumulação social da violência.

É imperioso, ainda, acrescentar o ingrediente apimentado desse processo – o sistema penitenciário. A humilhação, a violência e a corrupção nos presídios e penitenciárias brasileiras estimulam o revanchismo e a vingança daqueles que sofrem a degradação social – os apenados – posto que são considerados os “dejetos sociais” tendo como único destino a “cloaca da sociedade”.


(continua...)

7 Comments:

Blogger Kafé Roceiro said...

Perto docê me sinto meio burro não sei por quê... Deve ser por que eu sou mesmo ou por que ocê é inteligente demais...
Mas, essa onda de horror realmente está assolando o país de forma que não se vê solução plausível! Sinal dos tempos!
Abraços,
Kafé.

7:40 PM  
Blogger Ozéas said...

Gostei muito da panorâmica histórica dada, afinal, nada acontece por acaso, o que É será sempre fruto do que foi plantado. As origens muitas das vezes são as próprias respostas, mas como “continua...”, aguardo “desdobramentos e soluções”.
Abç

8:18 PM  
Anonymous Anônimo said...

Texto bastante técnico, politicamente correto. Eu estou que nem o Kafé roceiro: me sinto meia burra... rsrs :-) Bjs

1:14 AM  
Blogger Santa said...

Alexandre querido

Interrompi a fisioterapia para publicar o post em solidariedade ao jornalista Reinaldo Azevedo. Agradeço as palavras de carinho no blog. Se é que é possível,- tenha um bom domingo. Beijos.

8:47 PM  
Blogger Santa said...

Alexandre
Depois da parada forçada, estou voltando ao blog, aos poucos, mas voltando...Agradeço o carinho de sempre.Bjs

3:59 PM  
Blogger Unknown said...

Alexandre,

Já coloquei o "chumbinho" no meu blog, vamos ver se ao menos consigo espantar os ratos, apesar que depois de ler sua análise histórica do crime, sinto que no caso dos ratos a solução é ainda mais complicada.
Aguardo a continuação para ver se tem solução.

Beijo

11:49 PM  
Blogger Rose said...

O cidadania e efeito foi embora, virou uma coisa que não sei o que é ou quem fez.
agora só tenho o Poemas e Amores,

abraços

2:15 AM  

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